quarta-feira, 4 de junho de 2014

Sebastião da Gama: poemas (Cabo da Boa Esperança e Campo Aberto)

Caravela Perdida
Não sabe já, perdida caravela,
não sabe a minha voz o que demanda.
(Será talvez sem rumo andar perdida…)
Ainda bem, que assim não chega nunca;
a virgem ansiedade da partida
lhe anima a toda a hora a vela panda.

Chegar? P’ra quê, se era descer as velas
E era baixar o ferro, era parar?...
Antes errar, inciente de que lado
ficam agora as águas percorridas
e de que lado o Mar por navegar.

Caravela perdida, minha voz,
eia! Retumba o ar de teus acentos!
Pinta com tua cor todos os ventos!
Rompe!, vibra!, estremece! __ Ah! minha voz!,
e não quebres o ritmo, e não intentes
perguntar por que cantas, porque cantas

(in Cabo)

Largada


Ai a tão rara, fugitiva,
Certeza de vencer!...
Não me falem de Esperança! Quero é esta
Decisão nas palavras e nos passos. 

Navios, verdes de limos nas amarras, arrancai
Do cais dos meus sentidos!
Em mim não haja agora nem um
Que não seja bandeira desfraldada
Ou vela de navio.


 Meus mais longínquos pensamentos,
 Soltem-se ao claro Sol desta certeza.
 vinquem de Acção e Vida o ar da noite.

 Ao Mar!, ao Mar!,
 Com um peso de ferro atado aos pés,
 o cadáver já podre
 de meus desânimos inglórios!

 E eu, verdadeiro, surja,
 Sorrindo a todos o vão desaire.
 Rasguem velas, os mastros estilhacem,
 quantos ventos vierem.
 Verdadeiro por fim, cá vou.
 Nem um momento só,
 Largo das mãos meu leme de certeza.

_Ah!, conquistado a golpes de coragem!,
Ah!, ganho como prémio o que é bem meu
Por direitos legítimos de Moço!
(in Cabo)


O segredo de Amar

Fosse mais bela a vida e mais sincera…
Como eu lhe quero, mesmo assim!
Tanto lhe dei de mim
que já é menos acre do que fora.

Ah! bem me parece que o Amor melhora
quanto a graça de Deus não fez bonito.
Há lá coisa mais linda que um grito
quando foi o Amor que o pôs cá fora!...

Deixa ser o meu gesto uma grinalda
Nos teus cabelos, Vida!
Deixa que o meu olhar enflore teus olhos.

Adeus, adeus teus dedos ásperos!
Adeus teu rictus doloroso!                               
- Vida, quem é a minha namorada?

(in Cabo)

RELATÓRIO 

Vou pelo Mar e levo enclavinhados
os dedos num pedaço de madeira.
É da quilha, dos remos, ou do mastro?
Seja de aonde seja, se me ensina
que não desisto ainda de ir no Mar…

O’ glória de saber que o Mar termina
onde a minha coragem se acabar,
a ti dou quanto é meu!
Glória de por meus nervos garantir
o direito de escarnecer da Morte
quando a Morte julgar que me venceu!

(in Cabo)

CANÇÃO INÚTIL

Nunca o Mar me quis ter nas suas ondas
enrolado e perdido.
Sou o Poeta das manhãs fecundas:
vivo me quer o Mar, para cantá-las

Ó Mar, onde se acaba
tudo que é vão!
Ó Mar feito do nada dos regatos
e dos rios efémeros!
Saibam minhas manhãs a maresia!
Haja ranger de cordas de navios
e searas  de limos e de peixes,
haja a violência harmónica das ondas
nas manhãs que dão cor aos meus poemas!

Tudo fala verdade ao pé do Mar.
Mesmo as nuvens são velas que se rompem,
castigadas de um Sol que é vento puro
e que tem o direito de passar.
Andam gaivotas tontas à deriva
(acenos da ternura da Manhã…).
Tinem, nos estaleiros, marteladas.
E os motores monótonos, os gritos
dos homens e das aves, o inquieto
verbo do Mar, nas rochas espalmado
a todos os minutos, desde há séculos,
tudo revela a esplêndida verdade
de ao pé do Mar, em tudo que é do Mar,
a Vida estar desperta.

É o ar da Manhã, hálito alegre
do Mar, que enfuna as velas orgulhosas
desta canção poético-marítima.
Religiosamente aqui desfio
meu rosário de vagas.
Canção inútil!
Clarim que anunciou a Madrugada
depois de a Madrugada ter florido…

(in Cabo)

O CAIS

Já o cais não é de pedra,
de tanto sentir o Mar.
Já não é, a pedra, lisa:
já ganha forma de velas
pandas de vento e de orgulho;
já deixou de ser "branquinha,
p'ra ser azul como as águas.

Já o cordame, que sonha
noite e dia sobre o cais,
o tem o sonho mudado
em algas prenhes de iodo.
Degraus de pedra se animam
e pelas ondas se atrevem
— botes sem mestre, perdidos,
sem outro leme que o gosto
de ir pelas ondas adentro.

(in Campo Aberto)

INSCRIÇÃO

Nada sabe do Mar,
quem não morreu no Mar.
Calem-se os poetas
e digam só metade
os que andam sobre as ondas
suspensos por um fio.

Sabe tudo do Mar
quem no Mar perdeu tudo.
Mas dorme lá no fundo,
tem. os lábios selados,
e os olbos, que reflectem
e claramente explicam
os mistérios do Mar,
para sempre fechados.

(in Campo Aberto)

MANHÃ NO SADO

Brancas , as velas
eram sonhos que o rio sonhava alto.
Meninas debruçadas em janelas,
via-se, à flor azul das águas, as gaivotas.
E a Manhã quieta (sorrindo, linda, vinha vindo a
[Primavera...)
punha os pés melindrosos entre as conchas.
Derivavam .jardins imponderáveis
dos seus passos de ninfa
e tremiam as conchas
de súbitas carícias.

Longe era tudo: o medo dos naufrágios,
as angústias dos homens, o desgosto,
os esgares das tragédias e comédias
de cada um, os lutos, as derrotas.
Longe a paz verdadeira das crianças
e a teimosia heróica dos que esperam.

Ah, à beira-rio,
de olhos só para o rio, de ouvidos surdos
ao que não é a música das águas,
um sossego alegórico persiste.
Nem o arfar das velas o perturba.
Nem o rumor dos seios capitosos
da Manhã, que nas águas desabrocham
e flutuam, doentes de perfume.
Nem a presença humana do Poeta
— sombra que a pouco e pouco se ilumina
e se dilui, anónima, na aragem...

(in Campo Aberto)


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