sexta-feira, 6 de junho de 2014

Sebastião da Gama (Reflexão Social: selecção de poemas)

CARTA DE GUIA
Mesmo com este calor eu quero ir.
 Aos tropeções, aos bordos, de qualquer maneira,
 porque há pessoas que estão à minha espera
 e que nasceram pra eu me importar com elas.
 Há vinte e dois anos que estou a falar de mim
 e hei-de falar de mim a vida inteira:
 tanta coisa que eu tenho para dizer,
 e passar ao papel!
 A anatomia da minha alma, principalmente,
 que há-de ficar escrita,
 pra que vejam como é esquisito um homem por dentro.
Mas agora, neste momento,
 e noutros iguaizinhos a este,
 ponho de parte o binóculo com que me espreito
 e graças ao qual tudo o que em mim é pequeno me parece grande
 e vou prà frente, apesar do calor,
 apesar de ir como um bêbado.
 Há mãos estendidas, lábios secos.
 Casas aonde o Sol tem pudor de entrar, de tão infectas.
 Aonde Deus taparia o nariz, se chegasse à porta.
 Quando as palavras são como pensos de linho,
 não há nada melhor para a alma, feita de carne em chaga de um homem.
 Por isso é que vou indiferente a este calor de Junho.
 O binóculo fica à espera.
 Eu fico à espera.
 Largo barcos e redes,
 não aconteça que os outros todos que estão à minha espera
 tenham morrido já, quando eu chegar,
 ou já não tenham ouvidos para as minhas palavras,
 nem lábios que percebam
a frescura de água que eu levar...

In Itinerário Paralelo

OS QUE VINHAM DA DOR

Os que vinham da Dor tinham nos olhos
estampadas verdades crudelíssimas.
Tudo que era difícil era fácil
aos que vinham da Dor diretamente.

A flor só era bela na raiz,
o Mar só era belo nos naufrágios,
as mãos só eram belas se enrugadas,
aos olhos sabedores e vividos
dos que vinham da Dor diretamente.

Os que vinham da Dor diretamente
eram nobres de mais pra desprezar-vos,
Mar azul!, mãos de lírio!, lírios puros!
Mas nos seus olhos graves só cabiam
as verdades humanas crudelíssimas
que traziam da Dor diretamente.
In campo Aberto

Lá fora é que sim

Lá fora é que sim
me apetece estar
Não ao pé do altar,
Virgem de Belém.

E se eu for lá para fora?...
amava-te igualmente...
só o modo era outro
de rezar e de ser crente.

 Lá fora também andas...
Sem manto, sem coroa,
simples, Nossa Senhora!
Que mais linda és lá fora!...

Vais à fonte ( e eu a ver-te
entre as mais raparigas
-virgens, sem filhos essas)
encher a tua bilha.

Vais lavar o menino
mas a água é tão fria!...
queres que te acenda o lume,
Virgem Maria?
in "Pelo Sonho é que vamos"

Mordaça

Puseram-lhe na boca uma mordaça…

Mas o Poeta era Poeta
E tinha que falar.

Fez um esforço enorme,
puxou a voz como quem golfa sangue
e a mordaça soltou-se-lhe da boca.

Porém, não era já mordaça:

Agora,
era um poema a queimar
os ouvidos das turbas inimigas
que, na praça,
o tinham querido calar
in Itinerário

O Papagaio

Deixem-no lá, deixem-no lá, o papagaio!
Deixem-no lá, bem preso à terra,
vibrando!

Aos arranques,
a fazer tremer a terra,
a querer voar
pelo ar
até pertinho do Céu…

Deixem-no lá, deixem-no lá, o papagaio!
Deixem-no lá viver a sua inquietação
e ser verdade aquela ânsia
de fugir.
Não lhe cortem o cordel!
Poupem o papagaio à dor enorme
de cair,
papel inútil, roto, pelo chão.

Não lhe ensinem,
ao pobre papagaio de papel,
que a sua inquietação
é a única força que ele tem.

Deixem-no lá,
naquela ânsia de fuga,
no sonho (a que uma navalha
pode dar o triste fim)
de fazer ninho no Céu:
Sempre anda longe da terra, assim,
o comprimento do cordel…

Deixem-no lá, deixem-no lá,
o papagaio de papel!...
In Itinerário


CANÇÃO DA GUERRA

Aos fracos e aos covardes 
não lhes darei lugar 
dentro dos meus poemas. 
Covarde já eu sou. 
Fraco, já o sou demais, 
e se entre fracos for 
me perderei também. 

Quero é gente animosa 
que olhe de frente a Vida, 
que faça medo à Morte. 
Com esses quero ir, 
a ver se me convenço 
de que também sou forte. 
Quero vencer os medos... 
Vencer-me — que sou poço 
de estúpidos terrores, 
de feminis fraquezas. 
Rir-me das sombras, 
rir-me das velhas ondas 
bravas, rir-me do meu temor 
do que há-de acontecer. 

Venham comigo os fortes... 
Façam-me ter vergonha 
das minhas covardias. 
E de seus actos façam 
(seus actos destemidos) 
chicotes p’rós meus nervos. 
Ganhe o meu sangue a cor 
das tardes das batalhas. 
E eu vá — rasgue as cortinas 
que velam o Porvir. 
Vá — jovem, confiado, 
cumprindo o meu destino 
de não ficar parado. 
in Cabo

A Meus Irmãos

Batam-me à porta 
os que andam lá por fora, à neve; 
batam 
os que tiverem frio ou sede; 
os que sintam saudades de um carinho; 
os desprezados; 
os que há muito não vêem uma flor 
e encontram só poeira no caminho; 
os que não amam já nem já os ama 
ninguém; 
os esquecidos de como se sorri; 
os que não têm Mãe... 

Batam-me à porta os Desgraçados, 
os que têm os dedos calejados 
dos dedos ásperos da Miséria, o
s que travam desordens nas tavernas 
e brincam às facadas, 
os que não têm abrigo nem Amigo, 
os que o Destino escarrou, 
os que não foram crianças, 
os que nasceram num bordel 
e por quem passam todos sem olhar. 

Batei à minha porta, Irmãos, 
entrai, 
que eu tenho Amor pra vos dar... 

E se eu também bater 
(que eu também choro 
muitas vezes, lá por fora; 
também amargo tristezas; 
que eu também sou Desgraçado)... 
Pois se eu bater, 
vinde logo depressa abrir-me a porta; 
aquecei-me no meu lume; 
dai-me do pão que eu parti 
e do Amor que vos dei... 

Deixai-me estar entre vós 
como se fosse um de vós, 
que eu também sou Desgraçado... 

Ah! se eu bater 
(mas é preciso que eu possa 
ter força ainda nas màos), 
por Deus abri a porta, meus irmãos, 
como se a casa fora vossa!... 

in Serra- Mãe

Quatro Mil Soldados

Ra ta plá ta plá
quatro mil soldados
vão mecanizados
pela estrada fora.

Sereninha a hora,
manhã linda, linda,
mas os quatro mil
marcham indiferentes.

Ra ta plá ta plá
que bonito é!
Mas à volta há flores
e nenhum as vê.

Passam andorinhas,
dizem-lhes recados.
De olhos encantados,
passam raparigas.

Ondas lhes acenam.
Melros e pardais
fazem-lhes sinais
pela estrada fora.

Mas os quatro mil
vão mecanizados.
Passos acertados
pelo rataplã;

os ouvidos dados
só ao rataplã;
olhos cegos, cegos,
coração entregue

só ao rataplã
(Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá)

Que monotonia!
Que enfadonha letra!
Entretanto os melros
trinam de alegria.

Trinam, trinam, troçam.
─ Quatro mil soldados,
todos combinados,
negam a manhã!


Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá
Ra ta plá ta plá

(in Campo Aberto)

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