quarta-feira, 2 de março de 2016

"Que soidade de mia senhor hei" / "Canção de Amor"



Que soidade de mia senhor hei
quando me nembra dela qual a vi,
e que me nembra que bem a oí
falar; e por quanto bem dela sei,
rogu'eu a Deus que end'há o poder,
que ma leixe, se lhi prouguer, veer

cedo; ca, pero mi nunca fez bem,
se a nom vir, nom me posso guardar
d'ensandecer ou morrer com pesar;
e, porque ela tod'em poder tem,
rogu'eu a Deus que end'há o poder,
que ma leixe, se lhi prouguer, veer

cedo; ca tal a fez Nostro Senhor,
de quantas outras no mundo som
nom lhi fez par, a la minha fé, nom;
e poi-la fez das melhores melhor,
rogu'eu a Deus que end'há o poder,
que ma leixe, se lhi prouguer, veer

cedo; ca tal a quis Deus fazer
que, se a nom vir, nom posso viver.

Dom Dinis
Canção de Amor

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
faria amor, assim, com as palavras.
Eu cantaria mesmo que tu não existisses
porque haveria de doer-me a tua ausência.

Por isso canto. Alegre ou triste, canto.
Como se, cantando, tocasse a tua boca,
ainda antes da tua presença.
Direi mesmo, depois da tua morte.

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
ó minha amiga, doce companheira.
Eu festejo o teu corpo como um rio,
onde, exausto, chegarei ao mar.

Sim, eu cantaria mesmo que tu não existisses,
porque nada eu direi sem o teu nome.
Porque nada existe além da tua vida,
da tua pele macia, dos teus olhos magoados.

Assim quero cantar-te, meu amor,
para além da morte, para além de tudo.

Joaquim Pessoa, in 'Canções de Ex-Cravo e Malviver'

BRUMA

Amanheceu o céu branco
de névoa húmida olente
a terra fértil e maresia

que do mar se levanta
ao marulhar da onda
e alguma gaivota já

passa, inda ensonada
num bater de asa vai
procurando alimento

A bruma  vai abrindo
em lascas esfarripadas
o pinhal descobrindo

e as praias preguiçosas
desmaiam devagar
no mar calmo e brilhante

‘inda virgem de corpos
descobertos e quentes
que nele se deleitem

que o sol ainda não
os despertou dos sonhos
equívocos da noite

em que se perdem ‘inda
só se ouve algum suspiro
do acordar de alguém

Mas o sol rompe a bruma
com as flechas de brasa
e a rola já canta
e o céu já está azul…

Mercedes Ferrari

Conversa com D.Dinis, rei- poeta de “cantigas de amor”
Nota: as citações pertencem à cantiga:

“Que soidade de mia senhor hei”.

“D. DINIS REI LAVRADOR E POETA”
Os olhos fixavam, o coração dizia: vai…E eis que o Senhor D. Dinis, a quem
chamaram o “Rei Lavrador”, em estrofes poeticamente inspiradas declarava
o seu  amor aquela que o não podia ou não queria aceitar! O Rei - Poeta sofre, lamenta-se, pedindo a ajuda de Deus!
“Rogu’eu a Deus que end`há o poder,
Que me a leixe, se lhi prouguer, veer cedo;”
Sendo Rei, governando um País, não podia contudo governar, mandar no coração
daquela por quem se apaixonara, ao ponto de temer a loucura ou até mesmo a
Morte!
“Se a nom vir, nom me posso guardar,
D’ ensandecer ou morrer com pesar”
Arrebatado coração aquele, a quem o casamento com – diz-se - uma das mais belas mulheres daquela época, “ Dona Isabel de Aragão”, o não impedia de cortejar qualquer Dama e de se apaixonar loucamente! Diz-se também que os mais belos poemas são inspirados pelo sofrimento! Muito terá sofrido o monarca, por não poder chegar ao coração de quemparecia indiferente ao seu amor! Quem seria a nobre Dama, que ousava assim negar ao Rei de Portugal, o amor que ele lhe implorava?
“E porque ela todo em poder tem
Rogu’eu a Deus que ende há o poder,
Que ma leixe, se lhi prouguer, ver cedo;”
Esquecendo ou não a responsabilidade que pesava sobre a sua cabeça coroada e respeito devido à sua verdadeira esposa, D. Dinis, o “ Poeta”, entregava- se à paixão
 que o consumia!
“Cá tal a fez Nostro Senhor,
 de quantas outras no mundo som,
nom lhi faz par, a la minha fé nom,
e poi-la fez das melhores melhor.”
Mas a Senhora a quem dedicou este belo poema, esta bela “ Cantiga de Amor”, continuava insensível aos encantos poéticos do seu Soberano! Por mais que implorasse o fim do seu infortúnio, Deus parecia  não escutar as suas preces!
“Cá tal quis Deus fazer
Que, se a nom vir, nom posso viver.”

Ora, Senhor D. Dinis, afinal Sua Majestade não teve nem fez tudo quanto quis!

Elita Guerreiro* 24/2/2016

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